Vulgo Grace: Mistério, crime e opressão feminina na série baseada em Margaret Atwood
Lançada em 2017 pela Netflix, Vulgo Grace (Alias Grace, no título original) é uma minissérie canadense de seis episódios baseada no romance homônimo da consagrada escritora Margaret Atwood.
A história é inspirada em fatos reais, ocorridos no Canadá do século XIX, e gira em torno de Grace Marks, uma jovem imigrante irlandesa que se torna empregada doméstica e acaba acusada de um duplo homicídio brutal.
Com direção de Mary Harron e roteiro de Sarah Polley, Vulgo Grace mergulha profundamente em temas como memória, manipulação, opressão de gênero, loucura e justiça.
É uma narrativa envolvente, densa e esteticamente refinada, que dialoga diretamente com outras obras de Atwood, como O Conto da Aia, mas com uma abordagem histórica e psicológica distinta.
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A história real por trás de Vulgo Grace

Quem foi Grace Marks?
Grace Marks foi uma imigrante irlandesa que chegou ao Canadá ainda adolescente, em meados de 1840.
Empregada como doméstica na casa de Thomas Kinnear, um fazendeiro rico, ela foi acusada e condenada pelo assassinato do patrão e de sua governanta, Nancy Montgomery, junto com James McDermott, um ajudante da fazenda.
O caso gerou grande repercussão pública na época, especialmente por causa da ambiguidade do papel de Grace no crime. Ela seria vítima? Cúmplice? Manipuladora? Inocente?
Sua possível amnésia, alegada durante o julgamento, e sua juventude criaram um verdadeiro enigma para a sociedade vitoriana da época.
Enredo de Vulgo Grace
Memória, manipulação e a busca pela verdade
Na adaptação televisiva, a narrativa de Vulgo Grace é contada a partir da entrevista entre Grace (interpretada por Sarah Gadon) e o Dr. Simon Jordan (Edward Holcroft), um médico interessado em estudar os aspectos psicológicos do caso.
O objetivo dele é determinar se Grace pode ser perdoada e libertada, após anos de prisão.
A série se desenrola por meio de flashbacks, relatos fragmentados e lapsos de memória, criando uma narrativa não linear e cheia de tensão.
A cada novo depoimento de Grace, o espectador é desafiado a decidir: ela está dizendo a verdade? Está fingindo? Está se protegendo? Ou ela mesma já não sabe o que é real?
O poder do olhar feminino na direção e no roteiro
Mary Harron e Sarah Polley: vozes femininas no comando
A direção de Mary Harron, conhecida por Psicopata Americano, traz uma abordagem fria e calculada, mas profundamente simbólica.
Já o roteiro de Sarah Polley — atriz e cineasta reconhecida por seu trabalho feminista e socialmente engajado — transforma a minissérie em uma análise do que significa ser mulher em um mundo que constantemente silencia, explora e julga as mulheres.
Juntas, Harron e Polley traduzem para a tela o estilo literário de Margaret Atwood: meticuloso, psicológico e cheio de camadas ideológicas.
Temas centrais em Vulgo Grace
Gênero e opressão social
O principal tema de Vulgo Grace é a opressão das mulheres no século XIX — especialmente as de classes mais baixas. Grace é pobre, imigrante, mulher e órfã. Suas possibilidades são extremamente limitadas, e seu destino parece estar sempre nas mãos dos outros: empregadores, padres, médicos, juízes, jornalistas.
A série critica abertamente o sistema patriarcal e judicial da época, mostrando como as mulheres eram vistas como objetos de julgamento moral, e não como pessoas complexas.
Memória e narrativa
Outro tema fascinante em Vulgo Grace é o papel da memória como forma de poder. Grace é, ao mesmo tempo, narradora e suspeita. Seu relato molda a forma como vemos os acontecimentos — mas a série constantemente nos lembra de que a memória pode ser seletiva, involuntária ou manipulada.
O espectador nunca sabe ao certo o que é verdade. Isso transforma a minissérie em um thriller psicológico histórico, onde a dúvida é o elemento central.
Loucura, ciência e controle
Ao longo da série, há uma forte tensão entre ciência e superstição, entre psiquiatria emergente e práticas arcaicas como o espiritismo e o magnetismo animal. O médico Simon Jordan representa essa nova ciência racional, mas também se revela vulnerável à sedução e ao fascínio por Grace.
A ideia de loucura feminina, explorada por Atwood de forma brilhante, mostra como a sanidade das mulheres muitas vezes era diagnosticada com base em conveniências sociais e morais.
Elenco e performances
Sarah Gadon como Grace Marks
A atuação de Sarah Gadon é uma das mais elogiadas da minissérie. Ela interpreta Grace com uma frieza controlada e uma doçura enigmática, que fazem da personagem uma figura hipnotizante.
A cada cena, Gadon nos faz questionar se Grace está nos contando a verdade — ou apenas o que queremos (ou tememos) ouvir.
Elenco de apoio
O elenco coadjuvante também é de alto nível, com destaque para:
- Edward Holcroft como Dr. Jordan, o médico dividido entre ética e desejo.
- Rebecca Liddiard como Mary Whitney, amiga e símbolo revolucionário na vida de Grace.
- Anna Paquin como Nancy Montgomery, a governanta assassinada, cuja história se revela mais complexa do que aparenta.
Estética e ambientação
Um Canadá do século XIX visualmente impactante
Vulgo Grace foi filmada em locações autênticas no Canadá, com direção de arte detalhista e fotografia sombria, que reforça o clima claustrofóbico e opressivo da época. A trilha sonora discreta, quase ausente, intensifica o peso dos silêncios, dos olhares e dos espaços vazios.
Cada cena é como um quadro cuidadosamente composto — mas por trás da beleza visual, há sempre a sensação de tensão, julgamento e incerteza.
Recepção da crítica e prêmios
Reconhecimento internacional
Vulgo Grace foi amplamente elogiada pela crítica, especialmente por seu roteiro, direção e interpretação de Sarah Gadon. A série recebeu prêmios e indicações em festivais como:
- Canadian Screen Awards
- Critics’ Choice Television Awards
- Writers Guild of Canada Awards
A minissérie também entrou em diversas listas de melhores do ano, sendo considerada por muitos como uma das melhores adaptações de Margaret Atwood para o audiovisual.
Conclusão

Vulgo Grace é mais do que uma história de assassinato. É uma poderosa reflexão sobre memória, opressão, identidade e verdade.
Ao colocar uma jovem mulher em posição de narradora (e possível mentirosa), a série desconstrói as narrativas dominantes e convida o espectador a ouvir com desconfiança, mas também com empatia.
A minissérie é uma aula de narrativa audiovisual e uma denúncia elegante das estruturas patriarcais históricas, tão presentes ontem quanto hoje.
Se você se interessa por séries com profundidade psicológica, contexto histórico e crítica social, Vulgo Grace é uma obra imperdível — tão inquietante quanto necessária.
Assista ao trailer de “Vulgo Grace“
No Brasil, ‘Vulgo Grace” está disponível na Netflix.