Califado (2020): Um thriller político e religioso intenso que explora radicalização, identidade e escolhas morais
Lançada em 2020 pela emissora sueca SVT e distribuída mundialmente pela Netflix, Califado (Kalifat, no original) rapidamente se destacou como um dos thrillers mais intensos e provocativos da década.
Com uma trama centrada na radicalização islâmica na Europa, a série oferece uma abordagem crua e emocionalmente carregada de um tema real e urgente: o recrutamento de jovens por organizações extremistas, especialmente pelo autoproclamado Estado Islâmico (ISIS).
Ambientada entre a Suécia e a Síria, Califado mostra como as decisões individuais — influenciadas por ideologia, fé, desespero ou esperança — podem levar a consequências devastadoras, não apenas para os envolvidos diretamente, mas para suas famílias e comunidades.
A série examina, de maneira habilidosa e sensível, os dilemas morais enfrentados por mulheres e adolescentes diante da promessa de uma vida melhor, mesmo que essa promessa venha sob a sombra do terror.
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O coração de Califado está em sua narrativa multiperspectiva, onde diferentes personagens, com origens e intenções distintas, se veem conectados por uma ameaça comum: o extremismo islâmico.
A trama principal gira em torno de Pervin, uma jovem sueca que vive com o marido jihadista em Raqqa, na Síria, e quer desesperadamente escapar com a filha.
Pervin entra em contato com a policial de segurança sueca Fatima, oferecendo informações sobre um possível atentado planejado na Suécia, em troca de ajuda para retornar ao seu país.
Enquanto isso, em Estocolmo, acompanhamos Sulle, uma adolescente muçulmana nascida na Suécia, que, juntamente com sua amiga Kerima, é aliciada por Ibrahim, um carismático recruta do ISIS.
A narrativa segue sua trajetória da curiosidade à radicalização, mostrando de forma sutil como jovens vulneráveis podem ser manipulados por discursos sedutores e promessas utópicas.
Núcleo principal:
- Pervin: Vivendo sob o regime do califado na Síria, ela é uma figura profundamente trágica e corajosa, determinada a proteger sua filha e recuperar sua liberdade, mesmo sob ameaça constante de morte.
- Fatima: A policial de segurança sueca que tenta impedir o ataque iminente. Inteligente e obstinada, Fatima enfrenta resistência dentro da própria instituição, enquanto luta contra o tempo e a burocracia.
- Sulle: Adolescente comum de uma família muçulmana tradicional, que se deixa seduzir pela narrativa de pertencimento e propósito vendida pelo extremismo.
Radicais e vítimas: Uma abordagem humana da radicalização
Um dos maiores méritos de Califado é sua abordagem equilibrada e não sensacionalista do processo de radicalização.
A série evita os clichês de retratar extremistas apenas como vilões unidimensionais. Em vez disso, apresenta indivíduos com conflitos internos, traumas, motivações sociais e espirituais, o que dá mais profundidade e verossimilhança à narrativa.
A produção também destaca a instrumentalização das mulheres dentro do extremismo islâmico, revelando como muitas são enganadas por promessas de liberdade, espiritualidade e dignidade, mas acabam submetidas a regimes de opressão, violência e vigilância constante.
Ao mesmo tempo, Califado mostra o outro lado: as instituições ocidentais lidando com limitações legais, políticas e éticas para combater o terrorismo doméstico, sem violar direitos civis ou estigmatizar comunidades inteiras.
Representação feminina e empoderamento
Apesar do contexto opressor em que muitas personagens vivem, Califado é, essencialmente, uma série sobre mulheres — suas escolhas, resistência, sofrimento e força.
Pervin, Fatima, Sulle e Kerima não são meros instrumentos da trama, mas agentes de suas próprias histórias, mesmo que limitadas pelas estruturas patriarcais ou religiosas que as cercam.
Fatima, especialmente, representa a luta feminina dentro de uma instituição dominada por homens, enfrentando não apenas os terroristas, mas também o ceticismo de seus colegas e superiores.
Já Sulle e Kerima trazem à tona a complexidade da adolescência muçulmana na Europa, com suas dúvidas de identidade e pertencimento — um terreno fértil para a manipulação ideológica.
Realismo e crítica social
Califado foi elogiada pela crítica internacional por seu realismo e coragem ao tratar de temas sensíveis. A série não tem medo de abordar:
- O racismo e preconceito contra muçulmanos na Europa;
- A falha das instituições ocidentais em integrar minorias;
- A hipocrisia dentro das ideologias religiosas extremistas;
- O papel das redes sociais no recrutamento de jovens;
- A perda de identidade em imigrantes de segunda geração.
Esse cenário dá à obra um peso dramático e político notável, que a diferencia de outros thrillers com temática semelhante.
Produção, direção e elenco
Dirigida por Goran Kapetanović, a série tem uma cinematografia sóbria, claustrofóbica em Raqqa e fria na Suécia, refletindo o estado emocional de suas personagens. As locações são meticulosamente escolhidas para reforçar o contraste entre liberdade e opressão, entre lar e cativeiro.
O elenco se destaca pelas atuações naturais e contidas, em especial:
- Gizem Erdogan como Pervin, em uma performance poderosa, cheia de tensão e humanidade;
- Aliette Opheim como Fatima, a policial determinada que rouba as cenas com sua energia intensa;
- Nora Rios como Sulle, cuja transformação emocional é um dos pontos altos da série.
Repercussão e impacto
Lançada num momento em que a Europa vivia um debate intenso sobre segurança nacional, imigração e extremismo, Califado teve enorme repercussão.
A série foi elogiada por críticos na Suécia, EUA, Reino Unido e América Latina por evitar o sensacionalismo e buscar um retrato humano e realista do radicalismo.
Ao mesmo tempo, gerou controvérsia em alguns círculos religiosos e políticos, justamente por levantar questões incômodas sobre integração, falhas sociais e a política externa ocidental no Oriente Médio.
No entanto, Califado se firmou como uma obra relevante e necessária, especialmente pela forma como convida o espectador à reflexão ética, sem oferecer respostas fáceis.
Conclusão: Um drama instigante, necessário e emocionalmente poderoso

Califado é uma obra provocadora, atual e emocionalmente envolvente. Muito além de um simples thriller policial, a série mergulha em questões profundas sobre identidade, fé, política e pertencimento, sempre com foco na experiência humana.
Ao explorar como o extremismo se infiltra nas vidas comuns e transforma sonhos em tragédias, a produção se coloca entre os melhores dramas políticos da televisão contemporânea.
Com atuações poderosas, roteiro preciso e um tema de extrema relevância global, Califado é uma experiência imperdível para quem busca entretenimento com reflexão, e uma visão corajosa sobre um dos maiores desafios do mundo atual.
Assista ao trailer de “Califado”
No Brasil, “Califado” está disponível na Netflix.