A Doce Vida: Um Retrato Icônico e Decadente da Roma da Alta Sociedade no Final dos Anos 50, Dirigido por Federico Fellini

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Quando se fala em cinema italiano e em retratos viscerais da sociedade, A Doce Vida (La Dolce Vita, 1960) de Federico Fellini emerge como uma obra-prima incontornável.

Com um olhar ao mesmo tempo poético, satírico e profundamente crítico, Fellini transporta o espectador para uma Roma glamourosa e decadente, onde a alta sociedade se perde em festas intermináveis, escândalos midiáticos e um vazio existencial cada vez mais profundo.

Marcando uma transição importante na carreira de Fellini, A Doce Vida abandona o neorrealismo puro para mergulhar em um universo mais onírico, repleto de símbolos, alegorias e questionamentos existenciais.

Através do olhar do jornalista Marcello Rubini (interpretado por Marcello Mastroianni), o diretor constrói um painel fascinante da sociedade romana dos anos 50 e sua busca incessante por prazer, notoriedade e sentido.

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O Enredo: Um Mergulho no Vazio da Alta Sociedade

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Imagem: The Movie Database

Marcello Rubini: O Observador Envolvido

O filme segue Marcello Rubini, um jornalista de fofocas e aspirante a escritor, que circula entre celebridades, aristocratas, intelectuais e socialites em uma Roma efervescente.

Ele é um personagem ambíguo, dividido entre o desejo de fazer parte daquele mundo de excessos e sua crescente insatisfação com a superficialidade que o cerca.

Marcello observa tudo com um misto de fascínio e desprezo. Seus encontros, romances passageiros e entrevistas são moldados por uma constante sensação de deslocamento. A busca por autenticidade é incessantemente frustrada, seja nos relacionamentos, no trabalho ou na espiritualidade.

Episódios Fragmentados: A Estrutura Narrativa de A Doce Vida

Ao invés de uma narrativa tradicional com início, meio e fim, A Doce Vida é construída em episódios — festas, encontros, eventos jornalísticos — que funcionam como fragmentos de uma existência desintegrada.

Essa estrutura permite a Fellini explorar diferentes facetas da sociedade romana: do estrelato fútil ao existencialismo religioso, da boemia decadente à farsa política.

Cada episódio traz uma reflexão sobre o tédio moderno, o culto à imagem e a falência das instituições tradicionais, como a família, a igreja e o jornalismo.

A repetição de festas e ambientes vazios cria um ritmo hipnótico e cansativo, propositalmente desconfortável, espelhando o esgotamento emocional dos personagens.

Roma Como Palco da Decadência

A Cidade Como Personagem

A Roma de A Doce Vida não é apenas cenário; ela é um personagem vivo, pulsante e contraditório. Ao mesmo tempo em que exala beleza, história e arte, a cidade abriga uma sociedade que banaliza tudo isso em nome do prazer efêmero.

A famosa cena na Fontana di Trevi, em que a atriz Sylvia (Anita Ekberg) dança na água enquanto Marcello a observa encantado, se tornou um dos momentos mais icônicos da história do cinema — e um símbolo perfeito da sedução e da futilidade daquele mundo.

Fellini constrói uma cidade labiríntica, onde as ruas, mansões e bares se tornam passagens para encontros fortuitos e despedidas silenciosas. Roma é o espelho das contradições de seus habitantes: bela, mas vazia; rica, mas estéril; cheia de vida, mas sem sentido.

O Clima Pós-Guerra e a Ascensão do Consumo

A Doce Vida foi lançado em um momento-chave da Itália: o país vivia o chamado milagre econômico, com crescimento industrial e expansão do consumo.

Roma tornava-se um centro de luxo e ostentação, o que acentuava a desigualdade social e uma sensação de vazio cultural. Fellini capta esse espírito de época com uma maestria quase documental, mas filtrada por sua lente fabulista e crítica.

Os Temas Centrais de A Doce Vida

A Futilidade e o Vazio Existencial

Um dos principais temas do filme é o vazio que permeia a vida dos personagens. Apesar do luxo, da fama e do glamour, todos parecem profundamente insatisfeitos. A efemeridade das relações, a superficialidade das conversas e o hedonismo constante revelam uma sociedade em busca de algo que nunca encontra.

Marcello é o epicentro dessa angústia. Seus gestos revelam um homem que já não acredita em nada — nem na arte, nem no amor, nem na fé. Seu olhar constantemente distante denuncia um cansaço da vida que o cerca, mesmo quando mergulha nela.

O Culto à Imagem e o Papel da Mídia

A figura do paparazzo — literalmente criado a partir do personagem Paparazzo no filme — sintetiza a obsessão moderna pela imagem. A presença constante de câmeras, flashes e manchetes evidencia como a mídia molda a realidade, transforma pessoas em produtos e cria narrativas artificiais.

Fellini critica o jornalismo sensacionalista e a sociedade do espetáculo com sutileza, antecipando questões que se tornariam ainda mais relevantes nas décadas seguintes.

A Falência dos Valores Tradicionais

Em diversos momentos do filme, a religião, a família e o amor aparecem como instituições desacreditadas ou paralisadas. A visita à aparição da Virgem Maria atrai uma multidão que parece mais interessada no espetáculo do que na fé.

A relação de Marcello com seu pai revela o abismo geracional e emocional que os separa. A convivência com Emma, sua companheira, expõe uma intimidade sufocada pelo tédio e pelo ressentimento.

Federico Fellini: O Mestre da Ambiguidade

Um Diretor Entre o Real e o Fantástico

Federico Fellini sempre transitou entre o realismo e o surrealismo, e A Doce Vida marca um ponto de inflexão em sua carreira. Ainda com elementos da realidade social italiana, o filme é carregado de metáforas, simbolismos e alegorias.

A cena final, em que Marcello observa uma jovem acenando à distância enquanto o som do mar invade tudo, é ao mesmo tempo melancólica e esperançosa, como um aceno tímido a uma possível redenção.

A Crítica Disfarçada de Encanto

Fellini não condena diretamente seus personagens — ele os observa com compaixão e ironia. Ao mesmo tempo que os expõe, também os compreende.

Há beleza em sua melancolia, há poesia no fracasso de suas tentativas de conexão. O título A Doce Vida é irônico: por trás da doçura aparente, está um mundo em ruínas emocionais.

O Legado de A Doce Vida

Uma Obra-Prima Atemporal

Mais de seis décadas após seu lançamento, A Doce Vida permanece como um marco incontestável do cinema mundial. Influenciou gerações de cineastas — de Martin Scorsese a Paolo Sorrentino — e se mantém atual em sua crítica à superficialidade e ao culto à celebridade.

A performance de Marcello Mastroianni tornou-se icônica, assim como o figurino, a fotografia em preto e branco e a trilha sonora de Nino Rota. O filme venceu a Palma de Ouro em Cannes em 1960 e segue sendo celebrado como uma das maiores obras da sétima arte.

O Nascimento do “Paparazzo”

O impacto cultural de A Doce Vida vai além da tela. A palavra “paparazzo”, como já mencionado, foi incorporada ao vocabulário mundial a partir do personagem do fotógrafo no filme.

Isso evidencia o poder da obra em moldar percepções e discutir temas que se tornariam cada vez mais presentes — como a obsessão pela fama e pela exposição pública.

Conclusão

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Imagem: The Movie Database

A Doce Vida é muito mais do que um filme sobre festas, escândalos e celebridades: é um espelho da alma de uma sociedade à beira do colapso emocional.

Federico Fellini, com sua sensibilidade única, nos entrega um retrato icônico e decadente da Roma dos anos 50, um tempo em que tudo parecia possível — e ao mesmo tempo, absurdamente vazio.

Ao acompanhar Marcello Rubini por essa jornada de excessos e desilusões, o espectador é convidado a refletir sobre seus próprios desejos, suas máscaras e a doce, porém inquietante, vida que leva.

Assista ao trailer de “A Doce Vida”

No Brasil, “A Doce Vida” está disponível na Amazon Prime Video, Telecine e Plex.